Biologia Molecular e Propriedade Intelectual: planejando a proteção da sua invenção

Por Michele Pittol
20/12/2022

Tem-se acompanhado os avanços da biologia molecular e os benefícios resultantes nas áreas de medicina, agronomia e biotecnologia. No âmbito das patentes não é diferente, sendo os avanços na área concomitantes a pedidos de patente e, muitas vezes, disputas acirradas e complexas de direitos de proteção.

Se por um lado o término do tempo de validade de uma patente significa que as tecnologias podem ser usadas sem licença, do outro, o aumento da concorrência, a necessidade de impedir que terceiros copiem e se beneficiem da invenção faz com que o sistema de patentes continue impulsionando o desenvolvimento tecnológico, de forma a possibilitar, no caso da biologia molecular, técnicas cada vez mais mais simples, rápidas e econômicas.

Exemplo claro recai sobre a técnica de PCR (Reação em Cadeia da Polimerase), que revolucionou a pesquisa molecular, sendo a tecnologia mais conhecida e bem-sucedida para isolamento e análise genética, que teve sua patente (US 4,683,202) concedida em 1987 e que expirou, nos EUA, em 2007. Durante o período de vigência, obrigações e royalties foram pagos aos titulares da patente e investimentos foram empreendidos no desenvolvimento tecnológico, os quais culminaram em significativos avanços, como a invenção da PCR quantitativa em tempo real (qPCR), inovação criada a partir da PCR, que abordou muitas das limitações práticas associadas à técnica.

Atualmente, tem-se a CRISPR-Cas 9 (Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas associada a proteína Cas 9), uma técnica de edição gênica que tem sido utilizada em uma ampla gama de aplicações, desde a pesquisa básica, passando pela terapêutica clínica e melhoramento genético de plantas. Em linhas gerais, são sequências repetidas de nucleotídeos que podem ser direcionadas para localizar porções específicas no genoma de qualquer organismo e realizar cortes. É isso que possibilita a edição gênica (veja mais em [i]).

Este sistema de sequências CRISPR-Cas 9, que está presente no genoma bacteriano e de arqueas, funciona como um mecanismo de defesa contra vírus, identificando e picotando o DNA viral, foi estudado pelas pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna que publicaram um artigo (Jinek et al., 2012)[ii], onde mostraram a aplicabilidade do CRISPR-Cas 9 para cortar o DNA alvo. No mesmo ano da publicação do artigo, Doudna, Charpentier e colaboradores solicitaram uma patente desta invenção (US 10,266,850) em nome da Universidade da Califórnia (UC Berkeley). Porém, meses depois, o pesquisador Feng Zhang do Broad Institute Inc. vinculado ao Massachusetts Institute of Technology – MIT, também depositou uma patente sobre CRISPR.

Ressalta-se que no ano de ambos os depósitos, 2012, o USPTO concedia as patentes para quem primeiro inventasse a tecnologia (first to invent), ao invés de considerar quem primeiro requereu a patente (first to file). No ano seguinte, o USPTO mudou seus procedimentos, considerando, no caso de disputa de prioridade, o primeiro a fazer o depósito da invenção [1].

A patente de Zhang (US 8,697,359) foi concedida em 2014, o que gerou uma solicitação do UC Berkeley ao Conselho de Julgamento e Apelação de Patentes dos EUA (Patent Trial and Appeal Board – PTAB), que faz parte do United States Patent and Trademark Office (USPTO), para determinar quem foi o pioneiro na invenção CRISPR- Cas 9, sugerindo que certas reivindicações identificadas pela UC Berkeley em seu pedido, eram da mesma invenção que as reivindicações na patente do Broad Institute.

Em 2017 o PTAB decidiu que as patentes da UC Berkeley e a do Broad Institute para uso de CRISPR- Cas 9 eram distintas, sendo ambas patenteáveis. A patente de Zhang foi considerada nova e não óbvia para um técnico no assunto alcançar a mesma invenção utilizando os ensinamentos dos trabalhos anteriores como Jinek et al. (2012). A justificativa dessa decisão se deveu ao fato de que a invenção de Doudna e Charpentier estava relacionada a aplicações da CRISPR in vitro, em qualquer tipo de células, enquanto a de Zhang seria direcionada e com aplicação funcional em células eucarióticas (como células humanas). Nas palavras do conselho “Specifically, the evidence shows that the invention of such systems in eukaryotic cells would not have been obvious over the invention of CRISPR-Cas9 systems in any environment, including in prokaryotic cells or in vitro, because one of ordinary skill in the art would not have reasonably expected a CRISPR-Cas9 system to be successful in a eukaryotic environment. This evidence shows that the parties’ claims do not interfere[2]. Na sequência, outras apelações de interferência foram solicitadas ao PTAB pela UC Berkeley, e em fevereiro de 2022 o PTAB decidiu que os pesquisadores do Broad Institute foram pioneiros na aplicação da CRISPR – Cas 9 em células eucarióticas.

Desde então, outros pedidos de patentes relacionadas ao CRISPR-Cas foram depositados e concedidos para ambos os grupos de pesquisa. Sendo que os avanços nas pesquisas prometem o desenvolvimento de muitas outras tecnologias, uma vez que também podem ser utilizadas diferentes enzimas, modificações na técnica adaptada para diversos alvos, sistemas CRISPR de outras bactérias e arqueas podem ser estudados e incorporados em novas abordagens relacionadas à tecnologia CRISPR.

De acordo com a lei brasileira que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial – LPI (Lei 9.279/96), toda invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial pode ser patenteada[3]. Porém, além de ideias inovadoras, até alcançarmos o produto adequado para o mercado, são necessários anos de pesquisas e significativo investimento financeiro. E neste ínterim de testes e publicações, a invenção pode perder um dos critérios necessários para a patenteabilidade, ou seja, a novidade. Também deve-se atentar para a possibilidade de outro grupo de pesquisa estar estudando o mesmo tópico e requerer anteriormente um pedido de patente.

Tal possibilidade demonstra a importância de traçar um plano baseado em estratégias de mercado para proteção da invenção, desde a invenção pioneira, bem como seus desdobramentos. Assim, a aplicação das tecnologias em novos contextos e usos pode gerar nova invenção e demandar nova proteção, desde que sejam suficientemente descritos e comprovados os efeitos técnicos novos alcançados, como no exemplo da qPCR. Também novas aplicações, como da CRISPR-Cas, pode ser usada na pesquisa básica em ensaios in vitro, estudos clínicos, em células eucarióticas, biomedicina, tecnologias ambientais, etc.

Destaque-se que na área de Ciências Biológicas, a lei brasileira de marcas e patentes – LPI não considera invenção “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais” [4]. Todavia, exceções são feitas para os microrganismos transgênicos que atendam aos requisitos de patenteabilidade e que não sejam considerados mera descoberta.[5] Sendo que microrganismos transgênicos, de acordo com a Lei 9.279/96, “são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais” [6].

Deste modo, no Brasil, são passíveis de proteção os processos e produtos baseados na engenharia genética, onde seja possível verificar intervenção técnica significativa para o resultado final [7]. Contudo é necessário embasamento técnico com suficiência descritiva, de maneira que um técnico no assunto consiga entender e reproduzir o objeto da patente sem experimentações indevidas, bem como a melhor forma de execução da invenção (best mode), além de um quadro reivindicatório que defina o escopo de proteção que o requerente deseja obter, considerando o estado da técnica.

 

Por Michele Pittol (Doutora em Biologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Assistente de Patentes da Leão PI. E-mail: patentes5@leao.adv.br)

 

[1] Idem publicação Disponível em: USPTO. https://www.uspto.gov/patents/first-inventor-file-fitf-resources.

[2] Idem publicação Patent Interference No. 106048. Disponível em: USPTO https://acts.uspto.gov/ifiling/DispatchServlet , pg.2, Linha 7-12.

[3] Artigo 8 da Lei da Propriedade Industrial – LPI (Lei 9279 de 14 de maio de 1996).

[4] Artigo 10, inciso IX, da LPI.

[5] Artigo 18, inciso III, da LPI.

[6] Parágrafo único da LPI.

[7] Diretrizes de Exame de Pedidos de Patente na Área de Biotecnologia. Revista da Propriedade Industrial Nº 2604. 2020.

[i] Texto. Disponível em: https://pt.linkedin.com/pulse/o-poderoso-crispr-cas-michele-pittol

[ii] Jinek, M. et al. A programmable dual RNA-guided DNA endonuclease in adaptive bacterial immunity. Science, 337(6096): 816–821, 2012.

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